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do pipo ó copo

Ponte de Prado

do pipo ó copo

Ponte de Prado

TOQUE DE CAIXA

- As paredes trocaram com o teto e a cama parecia que andava às voltas. Tinha que me levantar e andar de um lado para o outro. A minha mãe começou a pregar aos berros se eu andava ao macho. Nunca mais quero desse veneno, cruzes - dizia a Beatriz, abatida depois de passar a noite em claro…

- Ai, eu também andei de um lado para o outro – retorquiu a Rosa – só me vinha à cabeça, passar o chão a pano e lavar a roupa, isto a meio da noite.

Rosa era cozinheira na “Luisinha da Venda”, mercearia, café e tasquinha, e a Beatriz era a criada de quartos. No dia anterior ao fim do almoço, estava um pacote de café ao lado da cafeteira. Rosa pegou nele, e pensou “cheira bem”…

- É isto que as pessoas vêm cá beber ao fim de comer…

Beatriz levantou-se e pegou no pacote; “parece cevada” disse.

- Dizem que é mais forte, que vem do Brasil.

- E como é? Vai ficar a olhar com isso na mão ou vamos experimentar – disse a Beatriz toda despachada. A Beatriz era uma moça baixinha e gordinha, de espirito alegre e brincalhão, mal falada na freguesia por andar de minissaia.

Rosa aproveitou a água quente e fez o café, como habitualmente fazia a cevada da manhã. Depois pegou em duas chávenas e começou a servir…

- Só esse bocadinho?...

- É assim que eu vejo a servir…

- Não, assim nem chega lá baixo; – levantou-se e pegou em duas malgas de sopa – bote aqui…

 Encheram as malgas e começaram a beber em pequenos goles…

- É bom, mais forte um xixinho que a cevada – Beatriz poisou a malga e limpou a boca com as costas da mão.

Nessa tarde, a roupa, que normalmente, lhe demorava a jornada toda, engomou-a numa hora, e ainda lavou o terreiro novamente, os vidros novamente e metade da estrada…  

Rosa, fez dois bolos, e às quatro já tinha o jantar pronto…

AVÉ

Na mão trazia duas espigas rainhas, da esfolhada na quinta grande e embrulhado num paninho três fatias de pão e presunto para as crianças. As pessoas juntavam-se no tempo de esfolhar o milho, ajudando umas às outras. Enquanto os outros ficaram mais um pouco, à volta da mesa, a provarem o vinho novo, Rosa, pensando nas crianças que ainda deveriam estar a pé à sua espera, veio-se embora.

Estava uma noite morna, com um luar bonito e brilhante. No estreito caminho do Outeiro as sombras das ramadas rendavam o chão de terra.

Ao passar a casa do Serrela, na curva antes de casa, parou espantada. Sentiu um arrepio nas costas. Deitada no chão, com as mãos em cruz em cima do peito, estava uma senhora, vestida de branco, que o luar iluminava e tornava mais brilhante.

Rosa, passou encostada ao muro do outro lado, e depois apressou o passo até casa, olhando para trás repetidamente.

Fechou o pesado portão, e ficou encostada escondida no escuro, arfando com a mão no peito. Silêncio. “Já devem estar a dormir” pensou. A imagem da senhora não lhe saia da cabeça. Se era a Senhora de Fátima, o que fazia deitava na borda do caminho? Porque não falou e não se manifestou? Qual o significado de aparecer assim e não fazer nada?...

Encheu-se de coragem e pegou no pau de levantar a roupa a secar. Isto não fica assim, pensou. Armada com o pau dirigiu-se à senhora deitada, que continuava imóvel na mesma posição.

A medo, encostou-se ao muro, e meio dobrada procurando esconder-se nas sombras, esticou as mãos, segurando o pau pelas pontas e tocou na cabeça deitada. O barulho foi-lhe familiar: plástico. Era um saco plástico de adubo. Levantou-o com o pau e este estendeu-se no meio do caminho. O luar iluminou o saco onde se lia em letras pretas “foskamónio” …

 

UM DIA VOU-TE ABRAÇAR.

Encostou a porta. Eram onze da noite, trovejava com intensidade e a chuva entrava, empurrada pelo vento que assobiava nas copas das árvores, alagando o chão de madeira.

Armando tinha ido para casa com as filhas; disse-lhes que ficava mais um pouco e que já iria. Mas foi ficando, sem coragem de ir, sabendo que se aproximava a hora em que teria de dizer adeus para sempre, tentando deste modo prolongar a presença da mãe, que ainda anteontem, antes de lhe ter dado o ataque, se ria com as crianças, enquanto fazia renda, sentada na cadeira de lona que o René lhe tinha trazido de Angola.

Se para muita gente o facto da capela mortuária de situar no centro do cemitério, as luzes terem falhado e o tempo invernoso, seriam motivo para se afastar, para Rosa, a chuva, o vento e a trovoada forneciam-lhe uma desculpa para ficar mais um pouco. Não tinha receios de quem lá estava em descanso eterno; os vivos esses sim é que me podem meter medo, dizia.

A chama das velas tremeluziam empurradas pelo movimento do ar que passava pelas frinchas da pesada porta, ameaçando apagar-se. De quando em quando a semi-escuridão era cortada por relâmpagos que entravam pelas vidraças de vidro fosco, cortadas em quadrados pequenos por um caixilho de ferro forjado.

E era esta luz tímida e ameaçada, que iluminava o caixão aberto, e Rosa de joelhos ao seu lado, com a mão nas mãos de sua mãe. Olhava a face serena, de quem parecia dormir, pedindo a Deus que se levantasse, lhe desse um sinal, lhe falasse; mas não. Luísa ficou para sempre imóvel, deitada com as mãos em cima do peito, segurando um terço de contas pretas.

AARDMAN

- É perfeitinha. E é uma rapariga – disse a mãe Luísa, enquanto a colocava nos seus braços.

Rosa aconchegou-a no colo. A primeira filha tinha nascido com deficiência física e mental, e a principal preocupação, se era saudável, só depois saber se era rapariga ou rapaz. Tinha agora três raparigas. Mais uma flor no meu jardim, pensou…

Luísa tapou a filha, e abreu a porta…

- Vinde ver a vossa irmã – chamou a sorrir…

A Teresa e a Albertina entraram silenciosamente no quarto acompanhadas da mica. Mica era uma ovelha, que tinham comprado pequenina dois anos antes, para fazer uma festa na páscoa. Mas a Teresa tinha-se-lhe afeiçoado, e chegada a data ninguém teve coragem de a matar; agora já grande comportava-se mais como um cãozinho, seguindo-a para todo o lado…

As raparigas subiram para a cama para espreitar a menina através dos agasalhos. Mica, curiosa, colocou as patas da frente na cama e também se esticou para observar.

Mas um objecto estranho captou-lhe a atenção. Em cima da cómoda uma moldura prateada, com uma foto da primeira comunhão da Albertina, brilhava com um raio de sol.

Aproximou-se abanando a cabeça, meteu-a na boca, saindo sorrateira do quarto, desceu as escadas, passou pela porta das traseiras e foi esconde-la no ninho.

DAR, EU ATÉ DAVA...

O alvoroço na rua, e as pessoas a correr levaram-na à porta da “venda”, onde tinha ido para comprar massa para o almoço.

Rosa viu o fumo e pensou “é na minha casa”. Era. Atirou os socos para longe e correu descalça rua abaixo, chorando descontroladamente antecipando o pior; tinha deixado as meninas na cama.

Eram casas geminadas, novas a estrear. Ainda cheiravam ao verniz das madeiras. A vizinha, a Rosinha “pancha”, assim chamada por ter perdido 4 filhos, todos com poucos meses de idade, dizia-se pelas mamadeiras de vinho que lhes dava, despejou as cinzas do fogão, no coberto. Um pouco de vento avivou as brasas, que voaram para a “pruma” de pinheiro, e em pouco tempo as labaredas chegavam ao telhado.

Ao chegar já o primo Alberto surgia do meio do fumo, com as meninas nos braços…

- Eu vi-te a ir às compras e pensei logo que as tinhas deixado em casa. Estão bem – entregou-as e virou-se para o povo gritando – peguem em baldes homens. Ajudem!...

Quando Rosa as abraçou choravam assustadas, com o correr das lágrimas, marcados a branco na pele suja de fuligem.

As pessoas organizaram-se e tirando água do poço passavam os baldes, tentando apagar as labaredas. Em vão…

Armando chegou nesse momento e desesperado tentou entrar em casa para salvar o que pudesse, mas foi agarrado pelas pessoas; o telhado ameaçava ruir. E com estrondo caiu levantando faúlhas ao céu.

Quando os bombeiros chegaram já as chamas amainavam, alimentando a coluna de fumo que dançava ao vento em direção ao alto.

Entardecia. Armando, Rosa com a filha mais nova ao colo e outra agarrada à saia, olhavam em silêncio para o braseiro, que lhes tinha enterrado os bens e os sonhos.

Como era de costume, quando acontecia uma tragédia na freguesia, foi organizado um peditório pela comissão vicentina.

Quando bateram à porta de José Caniças: “Dar eu até dava, mas para o Armando não, que esse é rico. Tem uma bicicleta…”

 

CRESCEU

- Queria falar comigo Sr. Padre?

- Entre D. Efigénia. Queria…

Entrou na sacristia, beijou-lhe a mão enquanto dizia um “sabença” e encostou-se a um canto, aguardando que o padre despisse os paramentos.

- Sabe D. Efigénia, eu pedi-lhe que viesse por causa da sua criada. Eu não sei como lhe dizer, mas as moças daquela idade crescem em comprimento – fez um gesto constrangido com as mãos em frente ao peito – e em largura. É da idade… e eu vejo quando ela vem à missa com vossemecê, os olhares dos moços, os risos e imagino os seus pensamentos. Mesmo na rua também já observei os dizeres de certos moços mais malandros, quando ela passa. E nós temos o dever de travar o pecado, tanto em obras como em pensamentos. E é, sabendo que também partilha desta posição, que lhe digo, que a farda que lhe deu quando ela veio, quê há dois anos? – D. Efigénia concordou com a cabeça – já lhe deixa muito a ver. Não lhe disfarça o corpo…

- E vou fazer uma farda nova? Mais vale pô-la a correr e mandar vir outra.

CALDO CASEIRO

- Rosa, está sempre a dar na rádio, aquilo das sopas Knorr, e não são caras. Vai ali à mercearia e trás uma de cada, para o Sr. Doutor provar a ver se gosta.

Rosa agora com 13 anos servia na casa do Dr. Engenheiro Silveira, a tomar conta dos meninos e dos recados…

Meteu três panelinhas na saca de pano, e saiu em passo apressado, pois era quase hora de almoço…

Estranhou o riso do moço da mercearia, que voltou com três pacotes e meteu um em cada panela.

- Aí está… três sopas.

 

CAMINHO

 

 

 

 

Na mão levava uma cesta de vime, com um pano aos quadrados vermelhos por cima, a tapar uma panela de ferro. Tinha oito anos, e uma vez por semana percorria o caminho entre Prado e a cidade de Braga, para ir ao quartel, onde o irmão mais velho estava colocado, encher a panela com o “rancho”, que sobrava das mesas, e que alimentava a família a semana inteira.

Tinha, pela jovialidade da idade, arranjado confiança com as crianças que ía encontrando e parava a brincar com elas. De brincadeira em brincadeira percorria os sete quilómetros da estrada. Muitas já a esperavam, de semana a semana, como a amiga que passava…

O irmão estava à porta, e com um: “anda comigo”, levou-a para um canto da sala dos cornetins.

- Ficas aqui um bocadinho, que o comandante anda a fazer revista, e não te pode ver aqui. Eu já te venho buscar.

Rosa entrou na pequena arrecadação, que ficava por baixo de umas escadas. Poisou a cesta no meio das vassouras e sentou-se num balde.

Com medo, focou a sua atenção no pequeno raio de luz que entrava pela fechadura, e se focava na parede oposta, e que foi enfraquecendo, até á escuridão total. Tentava decifrar os barulhos que ouvia, permanecendo o mais imóvel possível.

Descortinou então a luz de uma vela que se aproximava, e encostou-se à parede. De repente a porta abriu-se...

- Rosa, eu esqueci-me de ti – O Irmão falava com sofreguidão, acompanhando o frenesim com as mãos. Desculpa-me, mas com isto do comandante eu nunca mais me lembrei. E agora já é noite e nem comida há. Pega nesta broa de pão, mete-o aí na panela. Anda que eu vou contigo até à Cónega…

Sem esperar resposta, pôs-lhe a mão nas costas empurrando-a para a saída.

- Pede desculpa à mãe, mas eu esqueci-me completamente. Levas o pão, que eu depois durante a semana vou ver se levo alguma coisa.

Caminhavam apressados, o irmão mais à frente com a cesta na mão e Rosa tentando acompanhar com pequenas corridas.

- Pronto não posso ir mais. Vais sempre e não tenhas medo. Eu depois passo lá.

- Eu não tenho medo. Já sou crescida…

Rosa começou a caminhar olhando as sombras, que as arvores faziam na estrada, iluminadas pelas fracas lâmpadas da rua. Apressava mais o passo quando passava, de longe a longe, um carro para permanecer na sua luz, e entre um poste de iluminação e outro.

Procurava convencer-se em pensamentos que não sentia medo, e tentava concentrar-se a tentar descobrir pontos do caminho, calculando quanto faltava.

Ao chegar à ponte viu um vulto no meio do nevoeiro do rio a caminhar na sua direção. Era a mãe que vinha à sua procura, estranhando o cair da noite sem qualquer sinal.

- Estardalho de rapariga. Onde te meteste até esta hora?

Rosa abraçou-se na mãe, e começou a chorar. Por entre soluços contou-lhe o que tinha acontecido…

A mãe pôs-lhe a mão na cabeça.

- Anda, vamos pra casa, comer o caldo e uma fatia do pão.

POR HOJE

João, soube do barulho e esperou escondido no escuro temendo que o pai fizesse algo muito violento. Ele já tinha experimentado a sua fúria; numa discussão levou uma facada na perna, rasgando-lhe a farda. Tinha-se alistado no exército como voluntário, maneira que encontrou para sair de casa.

Tinha boas recordações da sua infância e de como a vida corria bem com o negócio de canos de cimento, que trouxeram da França, mas depois veio a falência e o vício do álcool; a miséria, tanto monetária como moral, tomou conta do pai.

João, Manuel e José, eram os mais velhos, tinham nascido com intervalo de um ano entre eles e já tinham saído de casa. Depois veio a Teresa, um pouco mais tarde, e estava a servir em Braga. René, Rosa e Conceição nasceram uns anos depois com intervalo de dois anos entre eles. Quando a Rita nasceu já João tinha filhos mais velhos.

Quando o pai chegou, bêbado, encostou-se à porta da cozinha pronto a entrar, se a mãe gritasse por ajuda como tinham combinado, dizendo a si próprio que faria o que fosse preciso, embora a sua consciência continua-se a dizer que não poderia bater no pai. Foi-lhe ensinado na doutrina que era pecado…

Ouviu um estalo e as palavras alteradas “merecias muito mais mas por hoje fica assim”. Depois o silêncio. Da mãe não ouviu um grito, nem um gemido nem choro.

Esperou 10 minutos com os punhos cerrados, encostado à porta. Depois esta abriu-se e a mãe disse-lhe para se ir embora, que estava tudo bem. O pai já dormia…

João deu a volta à casa e bateu à janela do quarto dos pequenos. Rosa abriu…

- O pai está a dormir. Até amanhã.

Rosa olhou para os irmãos “já podemos dormir. Por hoje está tudo bem” e deitou-se. Aos pés dormia a Conceição e separado por uma manta pendurada no tecto, René.

 

RESPEITO

- Arranjaram-me estas sardinhas. Prepara-as para a janta, com cebolada, que o Manel e o Tone Gomes vêm cá comer.

Luísa Peixota passou a tarde a preparar e a amanhar o peixe, porque tinha fama de cozinheira e não queria as pessoas, que vinham a casa, tivessem algo para dizer.

À noite, a Rosa, o René e mais nova, a São estavam sentados num canto da mesa, cara lavada e cabelo penteado, esperando a chegada do pai com as visitas.

Estavam excitados; era uma festa surpresa, uma comemoração, um baile talvez…

O Pai chegou, disse à mãe que podia servir e os três sentaram-se. Luísa pegou na travessa das sardinhas e das batatas cozidas que tinha deixado em cima do fogão de ferro, para não arrefecer, e poisou-as em frente ao marido.

Zé Ribeiro levantou-se e pegou na travessa das sardinhas e começou a inclina-la em cima da mesa. Virou-se para a mulher, sobrancelhas carregadas…

- Mas onde raio está o molho da cebolada. As sardinhas estão secas…

- Mas Senhor meu marido, foi de estar à espera…

Zé enfureceu-se e pegou na travessa a atirou-a ao chão. A melhor que havia em casa partiu-se em mil bocados. Não satisfeito calcou com os pés as sardinhas em cebolada, esmigalhando tudo numa papa. Depois olhou para a mulher e levantou a mão… Manuel Gomes que estava ao lado agarrou-lhe o braço…

- Ó Ribeiro deixe lá isso… Não faça isso homem…

 Soltou-se, apertou o casaco…

- Vamos à caranga que lé come-se como deve ser. Logo conversámos – disse ameaçador olhando a esposa.

As crianças choravam encostadas a um canto. Tinham-se levantado da mesa de um salto e apertavam-se as três no canto da cozinha.

Luísa Ribeiro limpava as peças da loiça e a papa de sardinhas e cebola.

- Calai-vos que eu guardei umas sardinhas no forno. Comemos, bebemos e logo vemos…