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do pipo ó copo

Ponte de Prado

do pipo ó copo

Ponte de Prado

UM DIA VOU-TE ABRAÇAR.

Encostou a porta. Eram onze da noite, trovejava com intensidade e a chuva entrava, empurrada pelo vento que assobiava nas copas das árvores, alagando o chão de madeira.

Armando tinha ido para casa com as filhas; disse-lhes que ficava mais um pouco e que já iria. Mas foi ficando, sem coragem de ir, sabendo que se aproximava a hora em que teria de dizer adeus para sempre, tentando deste modo prolongar a presença da mãe, que ainda anteontem, antes de lhe ter dado o ataque, se ria com as crianças, enquanto fazia renda, sentada na cadeira de lona que o René lhe tinha trazido de Angola.

Se para muita gente o facto da capela mortuária de situar no centro do cemitério, as luzes terem falhado e o tempo invernoso, seriam motivo para se afastar, para Rosa, a chuva, o vento e a trovoada forneciam-lhe uma desculpa para ficar mais um pouco. Não tinha receios de quem lá estava em descanso eterno; os vivos esses sim é que me podem meter medo, dizia.

A chama das velas tremeluziam empurradas pelo movimento do ar que passava pelas frinchas da pesada porta, ameaçando apagar-se. De quando em quando a semi-escuridão era cortada por relâmpagos que entravam pelas vidraças de vidro fosco, cortadas em quadrados pequenos por um caixilho de ferro forjado.

E era esta luz tímida e ameaçada, que iluminava o caixão aberto, e Rosa de joelhos ao seu lado, com a mão nas mãos de sua mãe. Olhava a face serena, de quem parecia dormir, pedindo a Deus que se levantasse, lhe desse um sinal, lhe falasse; mas não. Luísa ficou para sempre imóvel, deitada com as mãos em cima do peito, segurando um terço de contas pretas.

AARDMAN

- É perfeitinha. E é uma rapariga – disse a mãe Luísa, enquanto a colocava nos seus braços.

Rosa aconchegou-a no colo. A primeira filha tinha nascido com deficiência física e mental, e a principal preocupação, se era saudável, só depois saber se era rapariga ou rapaz. Tinha agora três raparigas. Mais uma flor no meu jardim, pensou…

Luísa tapou a filha, e abreu a porta…

- Vinde ver a vossa irmã – chamou a sorrir…

A Teresa e a Albertina entraram silenciosamente no quarto acompanhadas da mica. Mica era uma ovelha, que tinham comprado pequenina dois anos antes, para fazer uma festa na páscoa. Mas a Teresa tinha-se-lhe afeiçoado, e chegada a data ninguém teve coragem de a matar; agora já grande comportava-se mais como um cãozinho, seguindo-a para todo o lado…

As raparigas subiram para a cama para espreitar a menina através dos agasalhos. Mica, curiosa, colocou as patas da frente na cama e também se esticou para observar.

Mas um objecto estranho captou-lhe a atenção. Em cima da cómoda uma moldura prateada, com uma foto da primeira comunhão da Albertina, brilhava com um raio de sol.

Aproximou-se abanando a cabeça, meteu-a na boca, saindo sorrateira do quarto, desceu as escadas, passou pela porta das traseiras e foi esconde-la no ninho.

DAR, EU ATÉ DAVA...

O alvoroço na rua, e as pessoas a correr levaram-na à porta da “venda”, onde tinha ido para comprar massa para o almoço.

Rosa viu o fumo e pensou “é na minha casa”. Era. Atirou os socos para longe e correu descalça rua abaixo, chorando descontroladamente antecipando o pior; tinha deixado as meninas na cama.

Eram casas geminadas, novas a estrear. Ainda cheiravam ao verniz das madeiras. A vizinha, a Rosinha “pancha”, assim chamada por ter perdido 4 filhos, todos com poucos meses de idade, dizia-se pelas mamadeiras de vinho que lhes dava, despejou as cinzas do fogão, no coberto. Um pouco de vento avivou as brasas, que voaram para a “pruma” de pinheiro, e em pouco tempo as labaredas chegavam ao telhado.

Ao chegar já o primo Alberto surgia do meio do fumo, com as meninas nos braços…

- Eu vi-te a ir às compras e pensei logo que as tinhas deixado em casa. Estão bem – entregou-as e virou-se para o povo gritando – peguem em baldes homens. Ajudem!...

Quando Rosa as abraçou choravam assustadas, com o correr das lágrimas, marcados a branco na pele suja de fuligem.

As pessoas organizaram-se e tirando água do poço passavam os baldes, tentando apagar as labaredas. Em vão…

Armando chegou nesse momento e desesperado tentou entrar em casa para salvar o que pudesse, mas foi agarrado pelas pessoas; o telhado ameaçava ruir. E com estrondo caiu levantando faúlhas ao céu.

Quando os bombeiros chegaram já as chamas amainavam, alimentando a coluna de fumo que dançava ao vento em direção ao alto.

Entardecia. Armando, Rosa com a filha mais nova ao colo e outra agarrada à saia, olhavam em silêncio para o braseiro, que lhes tinha enterrado os bens e os sonhos.

Como era de costume, quando acontecia uma tragédia na freguesia, foi organizado um peditório pela comissão vicentina.

Quando bateram à porta de José Caniças: “Dar eu até dava, mas para o Armando não, que esse é rico. Tem uma bicicleta…”