Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

do pipo ó copo

Ponte de Prado

do pipo ó copo

Ponte de Prado

CAMINHO

 

 

 

 

Na mão levava uma cesta de vime, com um pano aos quadrados vermelhos por cima, a tapar uma panela de ferro. Tinha oito anos, e uma vez por semana percorria o caminho entre Prado e a cidade de Braga, para ir ao quartel, onde o irmão mais velho estava colocado, encher a panela com o “rancho”, que sobrava das mesas, e que alimentava a família a semana inteira.

Tinha, pela jovialidade da idade, arranjado confiança com as crianças que ía encontrando e parava a brincar com elas. De brincadeira em brincadeira percorria os sete quilómetros da estrada. Muitas já a esperavam, de semana a semana, como a amiga que passava…

O irmão estava à porta, e com um: “anda comigo”, levou-a para um canto da sala dos cornetins.

- Ficas aqui um bocadinho, que o comandante anda a fazer revista, e não te pode ver aqui. Eu já te venho buscar.

Rosa entrou na pequena arrecadação, que ficava por baixo de umas escadas. Poisou a cesta no meio das vassouras e sentou-se num balde.

Com medo, focou a sua atenção no pequeno raio de luz que entrava pela fechadura, e se focava na parede oposta, e que foi enfraquecendo, até á escuridão total. Tentava decifrar os barulhos que ouvia, permanecendo o mais imóvel possível.

Descortinou então a luz de uma vela que se aproximava, e encostou-se à parede. De repente a porta abriu-se...

- Rosa, eu esqueci-me de ti – O Irmão falava com sofreguidão, acompanhando o frenesim com as mãos. Desculpa-me, mas com isto do comandante eu nunca mais me lembrei. E agora já é noite e nem comida há. Pega nesta broa de pão, mete-o aí na panela. Anda que eu vou contigo até à Cónega…

Sem esperar resposta, pôs-lhe a mão nas costas empurrando-a para a saída.

- Pede desculpa à mãe, mas eu esqueci-me completamente. Levas o pão, que eu depois durante a semana vou ver se levo alguma coisa.

Caminhavam apressados, o irmão mais à frente com a cesta na mão e Rosa tentando acompanhar com pequenas corridas.

- Pronto não posso ir mais. Vais sempre e não tenhas medo. Eu depois passo lá.

- Eu não tenho medo. Já sou crescida…

Rosa começou a caminhar olhando as sombras, que as arvores faziam na estrada, iluminadas pelas fracas lâmpadas da rua. Apressava mais o passo quando passava, de longe a longe, um carro para permanecer na sua luz, e entre um poste de iluminação e outro.

Procurava convencer-se em pensamentos que não sentia medo, e tentava concentrar-se a tentar descobrir pontos do caminho, calculando quanto faltava.

Ao chegar à ponte viu um vulto no meio do nevoeiro do rio a caminhar na sua direção. Era a mãe que vinha à sua procura, estranhando o cair da noite sem qualquer sinal.

- Estardalho de rapariga. Onde te meteste até esta hora?

Rosa abraçou-se na mãe, e começou a chorar. Por entre soluços contou-lhe o que tinha acontecido…

A mãe pôs-lhe a mão na cabeça.

- Anda, vamos pra casa, comer o caldo e uma fatia do pão.

POR HOJE

João, soube do barulho e esperou escondido no escuro temendo que o pai fizesse algo muito violento. Ele já tinha experimentado a sua fúria; numa discussão levou uma facada na perna, rasgando-lhe a farda. Tinha-se alistado no exército como voluntário, maneira que encontrou para sair de casa.

Tinha boas recordações da sua infância e de como a vida corria bem com o negócio de canos de cimento, que trouxeram da França, mas depois veio a falência e o vício do álcool; a miséria, tanto monetária como moral, tomou conta do pai.

João, Manuel e José, eram os mais velhos, tinham nascido com intervalo de um ano entre eles e já tinham saído de casa. Depois veio a Teresa, um pouco mais tarde, e estava a servir em Braga. René, Rosa e Conceição nasceram uns anos depois com intervalo de dois anos entre eles. Quando a Rita nasceu já João tinha filhos mais velhos.

Quando o pai chegou, bêbado, encostou-se à porta da cozinha pronto a entrar, se a mãe gritasse por ajuda como tinham combinado, dizendo a si próprio que faria o que fosse preciso, embora a sua consciência continua-se a dizer que não poderia bater no pai. Foi-lhe ensinado na doutrina que era pecado…

Ouviu um estalo e as palavras alteradas “merecias muito mais mas por hoje fica assim”. Depois o silêncio. Da mãe não ouviu um grito, nem um gemido nem choro.

Esperou 10 minutos com os punhos cerrados, encostado à porta. Depois esta abriu-se e a mãe disse-lhe para se ir embora, que estava tudo bem. O pai já dormia…

João deu a volta à casa e bateu à janela do quarto dos pequenos. Rosa abriu…

- O pai está a dormir. Até amanhã.

Rosa olhou para os irmãos “já podemos dormir. Por hoje está tudo bem” e deitou-se. Aos pés dormia a Conceição e separado por uma manta pendurada no tecto, René.

 

RESPEITO

- Arranjaram-me estas sardinhas. Prepara-as para a janta, com cebolada, que o Manel e o Tone Gomes vêm cá comer.

Luísa Peixota passou a tarde a preparar e a amanhar o peixe, porque tinha fama de cozinheira e não queria as pessoas, que vinham a casa, tivessem algo para dizer.

À noite, a Rosa, o René e mais nova, a São estavam sentados num canto da mesa, cara lavada e cabelo penteado, esperando a chegada do pai com as visitas.

Estavam excitados; era uma festa surpresa, uma comemoração, um baile talvez…

O Pai chegou, disse à mãe que podia servir e os três sentaram-se. Luísa pegou na travessa das sardinhas e das batatas cozidas que tinha deixado em cima do fogão de ferro, para não arrefecer, e poisou-as em frente ao marido.

Zé Ribeiro levantou-se e pegou na travessa das sardinhas e começou a inclina-la em cima da mesa. Virou-se para a mulher, sobrancelhas carregadas…

- Mas onde raio está o molho da cebolada. As sardinhas estão secas…

- Mas Senhor meu marido, foi de estar à espera…

Zé enfureceu-se e pegou na travessa a atirou-a ao chão. A melhor que havia em casa partiu-se em mil bocados. Não satisfeito calcou com os pés as sardinhas em cebolada, esmigalhando tudo numa papa. Depois olhou para a mulher e levantou a mão… Manuel Gomes que estava ao lado agarrou-lhe o braço…

- Ó Ribeiro deixe lá isso… Não faça isso homem…

 Soltou-se, apertou o casaco…

- Vamos à caranga que lé come-se como deve ser. Logo conversámos – disse ameaçador olhando a esposa.

As crianças choravam encostadas a um canto. Tinham-se levantado da mesa de um salto e apertavam-se as três no canto da cozinha.

Luísa Ribeiro limpava as peças da loiça e a papa de sardinhas e cebola.

- Calai-vos que eu guardei umas sardinhas no forno. Comemos, bebemos e logo vemos…

TRÊS SEMANAS

À noite olhava para o céu estrelado, da janela do sótão e tentava descortinar a direção por onde poderia correr para chegar a casa.

Depois deitava-se no colchão de palha estendido no chão, agarrada à boneca de trapos que tinha conseguido esconder na trocha da roupa, chorando com saudades e sonhando com o caminho por onde poderia correr para chegar a casa.

Aos sete anos, 40 km de distância são somas de passos imaginários e não de metros acumulados.

Uma prima tinha arranjado este emprego, na cidade do Porto, como criada dos meninos, numa casa boa e farta, austera mas honesta, como não se cansava de dizer.

Na terceira semana, teve a primeira folga. Escondeu a trouxa no rés-do-chão, por trás da porta de saída, enquanto os senhores almoçavam.

O relógio da sala tocou a Ave-maria e quando dava as três badaladas, saiu para a rua, olhou para trás, e começou a caminhar rua abaixo com a certeza que não voltaria mais.

CONHECIMENTO

- Estão a bater? Rapaz vai ver quem é – virou-se para o René que estava sentado na ponta do banco.

René levantou-se de um salto com um “licença meu pai” entre dentes e logo voltou a correr…

- É a “fessora” da Tita, quer falar consigo meu pai.

O Sr. Ribeiro poisou a colher na malga da sopa, bebeu um gole de vinho, levantou-se resmungando “já nem se pode comer na paz do senhor…”

A Rosa tinha entrado para a escola no ano anterior. As letras e os números harmonizaram-se em si, e no último período a professora colocou-a junto com as alunas da 2ª classe. Este ano começara faz quinze dias e ainda não se tinha matriculado…

À mesa, entre uma colher de caldo e outra, Rosa tentava ouvir a conversa que se passava ao portão de entrada, entre o pai e a professora.

Sr. Ribeiro, eu peço-lhe que deixe a sua filha continuar na escola. Ela é muito esperta e é uma pena que não continue…” dizia a professora com voz grave. Do pai ouvia “vou pensar, vou pensar

Se o problema são despesas, eu pago-lhe os estudos. Se deixar, ela pode até viver na minha casa. É uma pena que não continue…”. Em resposta um “vou pensar” irritado.

Entrou, sentou-se à mesa, virou-se para a filha: “Sabes ler e escrever, não sabes?”, Rosa anuiu com a cabeça.

- Então já te chega. O que ela quer é uma criada, pra ter em casa.

QUEM ME DERA

- Vô, fomos aí pela estrada acima, pedir pão – enquanto falava abriu o lenço da cabeça, com vários pedaços de pão de milho – eu e o Reiné. Pedimos pra si, mas já comemos alguns…

Há vários anos que o avó estava entravado, da cama para a cadeira do coberto, para apanhar sol nos pés, e daí para a cama.

- Pode ser, dá-me um bocado. Olha lá, ninguém vos deu um cigarrinho? Isso é que era. Olarila, isso é que era…

O LÁPIS BRANCO

Fez o ditado sem erros, e teve um prémio. A professora abriu uma caixa com lápis e disse-lhe para escolher um.

No meio das cores estava um lápis branco; nunca tinha visto um lápis branco. Escolheu-o.

Orgulhosa chegou a casa e mostrou o prémio. Pegou numa folha e tentou pintar… pegou num pedaço de um papel azul e tentou de novo. Mas nada saía da ponta do lápis.

O pai chegou-se por trás, espreitou o papel e deu-lhe uma sapatada na nuca.

“Ai agora choras… Raio de rapariga, vai logo pegar num que não serve pra nada…”